O Judiciário sob a lógica neoliberal
Por Redação Gazeta Gaúcha
Portal GZ1.com.br
(por Rafaella Fagundes de Menezes)
Porto Alegre RS
Foto: Divulgação
O compromisso com a justiça cede espaço à lógica da entrega, da avaliação por números, do cumprimento de metas.
“O desafio do Judiciário contemporâneo é equilibrar a busca por eficiência com a preservação do valor público do trabalho e da Justiça.”
A chamada “modernização” do Judiciário brasileiro tem caminhado a passos largos. Mas em que direção? O uso de termos como produtividade, metas, eficiência e inovação se tornou dominante no vocabulário institucional, geralmente associado à ideia de um Judiciário mais eficaz e comprometido com resultados. No entanto, o que parece uma mudança administrativa neutra ou até virtuosa oculta uma transformação mais profunda e preocupante: a internalização e normalização da lógica neoliberal no sistema de Justiça.
É esse o ponto de partida do meu livro “Gestão e Trabalho no Judiciário: desafios da nova lógica gerencial”, recém-lançado pela Editora Thoth, fruto da dissertação do mestrado, de muita pesquisa, vivência institucional e inquietações acumuladas ao longo de anos como servidora pública.
O Judiciário, historicamente comprometido com a defesa de direitos, está passando por mudanças influenciadas por modelos gerenciais do setor privado, onde performance e controle passam a valer mais que reflexão crítica e compromisso público. O gerencialismo, opera como braço operacional do neoliberalismo, fomentando discursos produzidos pela lógica da concorrência, da eficiência e da produtividade. O preço sobre o trabalho cotidiano de servidores e magistrados tem sido alto: adoecimento, esvaziamento do sentido da atividade, perda de autonomia, excesso de metas, individualização do sujeito, estão entre as principais consequências.
Nesse cenário, a figura do servidor público, e mesmo do magistrado, é reconfigurada. O compromisso com a justiça cede espaço à lógica da entrega, da avaliação por números, do cumprimento de metas quantitativas que pouco dizem sobre a qualidade do serviço ou sobre a transformação social que a Justiça deveria promover. Em lugar do juiz garantidor, cada vez mais ganha destaque o papel do gestor, do que instiga e promove a produtividade. Em vez da escuta atenta, a triagem automatizada. Em vez da reflexão jurídica, o “dashboard” de desempenho. Não que haja algo errado em querer melhorar a produtividade, mas esse não deve ser o único fator para mensurar o resultado no serviço público.
A crítica que proponho não é ao uso de técnicas de gestão em si. A gestão é uma ferramenta valiosa e necessária. O que está em jogo é a hegemonia da racionalidade gerencialista, que não admite contestação e deslegitima outras formas de organizar o trabalho e pensar a justiça. Trata-se de uma lógica que naturaliza a precarização simbólica dos trabalhadores públicos, disfarçada de profissionalização e inovação.
O livro é, assim, uma convocação à crítica. Uma crítica que é também um gesto de cuidado: com a Justiça como valor democrático, com o serviço público como bem coletivo, com o trabalho como fonte de sentido — e não apenas de resultado.
O desafio do Judiciário contemporâneo é equilibrar a busca por eficiência com a preservação do valor público do trabalho e da Justiça. Diante de uma instituição imersa em discursos de performance e excelência, é necessário questionar “a quem servimos?” e talvez essa seja uma das tarefas mais urgentes do nosso tempo institucional.
Técnica do Poder Judiciário desde 2009 e mestre em Administração. Servidora do TJRS.