Brasil e China se reuniram nesta quarta-feira (23) e assinaram um documento que aborda seis pontos em busca de uma desescalada e eventual solução para o conflito na Ucrânia.
As autoridades dos dois países destacaram que Pequim e Brasília apoiam uma conferência internacional de paz “em um momento adequado que seja reconhecida tanto pela Rússia como pela Ucrânia, com participação igual de todas as partes”.
Para o professor e pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas (Nucleas) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), João Claudio Pitillo, tal movimentação é uma contraposição à cúpula de paz na Suíça, que, segundo ele, foi projetada para “condenar a Rússia”. “É por isso que Brasil, China e África do Sul não têm interesse em participar da mesma.”
“Essa cúpula de paz [da Suíça] não vai falar de paz. Ela, na verdade, é uma cúpula de opressão, uma cúpula de dominação. O que essa cúpula quer é uma rendição russa incondicional”, afirmou.
Vale ressaltar que os países não irão ao encontro realizado em 15 de junho, no país europeu, do qual a Rússia não participará.
O assessor da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, e o chanceler chinês, Wang Yi, chegaram a entendimentos comuns sobre uma possível solução política na Ucrânia.
Em um dos tópicos, foi ressaltado que
os ataques às usinas nucleares e outras instalações nucleares pacíficas “devem ser combatidos”. “Todas as partes devem cumprir o direito internacional, incluindo a Convenção sobre Segurança Nuclear, e prevenir resolutamente acidentes nucleares.”
Para Pitillo,
Brasil e China já manifestavam desconfiança em relação à cúpula na Suíça desde o início. O professor entende que
o Brasil não participaria de uma tentativa de encurralar a Rússia e que uma verdadeira cúpula de paz deveria ocorrer entre
Moscou e Kiev, com possíveis assessoramentos diplomáticos de outros países, mas sem a imposição de armas.
A
relação estreita entre os governos chinês e russo é fator crucial, segundo o pesquisador, que motiva que os chineses reconheçam que o conflito visa a Rússia e também tem potencial de prejudicar seus próprios interesses. “A China, desde o início, sabe que o conflito gerado na Ucrânia e que visa combalir a economia russa tem por tabela também atingir a China.”
O professor destaca que Pequim adota uma postura bastante diplomática, muitas vezes chamando ambos os lados para o diálogo, mesmo que o Ocidente tente separar os países com contradições. “Muitas das vezes, de maneira sutil, Pequim tem chamado os dois lados para a conversa.”
Para ele, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e a diplomacia de Brasília também entendem que “o conflito que acontece na Ucrânia não é uma guerra simples, não é uma guerra imperialista, não é uma guerra de dominação”.
O especialista enfatiza que o conflito não se trata de uma tentativa russa de destruir o governo ucraniano ou se apoderar das riquezas do país, mas de uma defesa contra o avanço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Pitillo critica a cúpula suíça por buscar referendar o papel ocidental na Ucrânia, o que ele vê como uma tentativa de destruir a Rússia e “colocá-la de joelhos”.
Ele ressalta a importância de cúpulas de paz genuínas, onde todos os participantes estão em igualdade de condições, e compara a situação atual com negociações históricas, como as do Vietnã e de Angola, onde pequenos países negociavam em pé de igualdade com potências.
Ele argumenta que a cúpula suíça, ao contrário, visa encurralar a Rússia e juntar forças contra ela, algo que não interessa ao Brasil ou à China. “O Brasil quer que a guerra acabe, a China precisa que a guerra acabe, mas é preciso que a guerra acabe de maneira justa.”
Para isso acontecer, no seu entendimento, a Ucrânia deve deixar de ser uma ameaça à Rússia e um instrumento de desestabilização do Leste Europeu.
Segundo Pitillo, Moscou deseja a paz, mas não à custa de se render a imposições ocidentais. Além disso, a postura ocidental tem sido a de fornecer armas a Kiev e lucrar com a tentativa de destruir a Rússia. “A OTAN é parte interessada do problema, pois põe armas na Ucrânia e não se furta a dizer que lucra com uma Rússia destruída, com uma Rússia desmantelada.”
A experiência diplomática do Brasil é destacada por Pitillo, que enfatiza a
relação de respeito com os russos. “O Brasil tem uma diplomacia muitas das vezes maior até do que a sua política”, comenta.
Além disso, diz, a elite ucraniana mantém o país subjugado ao Ocidente e visa lucrar com o conflito. “Enquanto a OTAN estiver sustentando, aliciando, fustigando setores da elite ucraniana, o governo ucraniano vai estar sequestrado pela pauta econômica, porque a Ucrânia é um país que está há muito tempo numa crise financeira sem precedentes.”
O analista lembra que os ucranianos herdaram um grande complexo industrial da União Soviética, mas tudo isso foi destruído pelo “entreguismo” aos interesses ocidentais, que querem destruir a Rússia.
“O mundo está dividido entre as potências capitalistas ocidentais, que precisam ampliar o seu arco de dominação e exploração, e um Sul Global que é inorgânico, mas cria os seus instrumentos, digamos assim, primários, mecanismos de autodefesa a partir de uma relação mais justa e fraterna.”
O professor visitante na Universidade de Relações Internacionais da China, Marcus Vinicius de Freitas, afirma que Amorim se esforça para ampliar a influência brasileira, como na atuação da adesão do país ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e na tentativa de intermediar uma solução no caso do Irã, em 2010.
Freitas ressalta que, embora Amorim busque esse protagonismo, ainda falta base teórica e acadêmica que acompanhe essas ações. “Amorim veio buscando um protagonismo que seria interessante para o Brasil ter, como país importante do BRICS, só que esse protagonismo nunca é acompanhado de uma formulação mais profunda, acadêmica e analítica”, opina.
“Então se torna uma ação individualizada, e não o reflexo de uma política bem pensada, desenhada e colocada no papel”, afirma Freitas.
No entanto, o professor reconhece a
importância do Brasil no cenário internacional, especialmente como parceiro comercial significativo para os chineses. “O Brasil é um protagonista importante internacionalmente falando. É um parceiro importante para a China, do ponto de vista comercial, e tem aí sinergias importantes.”
Ele observa que a relação estreita entre Rússia e China é antiga e de grande importância, e que, ao Brasil, faz sentido se aproximar devido a seus próprios interesses e à complexidade do mundo multipolar. “Se o Brasil quer ter algum protagonismo, é normal que se aproxime naturalmente da China, até porque o Brasil também tem seus interesses.”
Como o conflito na Ucrânia afeta os Estados Unidos?
Freitas destaca que
a recente contraofensiva ucraniana contra a Rússia não atingiu as expectativas, descrevendo-a como “
a famosa contraofensiva ucraniana que nunca aconteceu ou se aconteceu, ficou abaixo das expectativas”.
Ele analisa que o Ocidente, liderado pelos EUA, enfrenta uma “crise existencial” em meio a uma transição de hegemonia. “Os chineses, que são um país da paz e harmonia, são contrários ao conceito de hegemonia.”
O Ocidente, segundo Freitas, luta para manter o status quo que tem beneficiado os países ocidentais ao longo dos últimos 70 anos. “Os EUA lutam pela preservação da situação do status quo e […] estão de alguma forma se beneficiando ao longo do tempo, dos últimos 70 anos, como a principal potência do sistema ocidental.”
Freitas identifica três grandes receios ocidentais em relação a essa transição: a mudança do eixo econômico do Atlântico para o Pacífico, a ascensão de um país em desenvolvimento como líder global, e a transição de uma primazia da cultura judaico-cristã para uma civilização chinesa.
“As principais economias do mundo vão estar no Pacífico, e não no Atlântico”, explica. “Os chineses dizem que a China sempre será um país em desenvolvimento, mas você vai ter a liderança global de um país em desenvolvimento”, completa.
Hoje, segundo Freitas, americanos temem uma associação entre Rússia e China, devido aos vastos recursos minerais do território russo e ao elevado capital financeiro da China.
O professor explica que o atual presidente americano, Joe Biden, ficaria enfraquecido nas eleições deste ano, em que busca se manter no poder, caso houvesse fim no conflito. “Agora, para o próximo ano, será mais fácil chegar a algum tipo de negociação.”
“A guerra da Ucrânia não vai ser resolvida porque você tem a questão do calendário eleitoral norte-americano. E por esse calendário, a Ucrânia não chegará a um acordo com a Rússia.”
Até mesmo seu rival, Donald Trump, afirmou anteriormente que a OTAN possui um custo elevado que não é justificado, sendo mais “reticente” à organização. “Biden ainda tem aquela questão de discurso nacionalista de querer que os Estados Unidos se imponham à função de liderança.”
“A negociação só tem um aspecto relevante de toda essa questão, que é justamente a OTAN abrir mão de qualquer tentativa de incluir a Ucrânia como país-membro da OTAN. Moscou entende que não faz nenhum sentido que a Rússia tenha […] na sua porta uma potência nuclearmente armada, para justamente fazer frente a Moscou.”
Fonte: Site Sputnik / Guilherme Correia / Todas as matérias