Firmado há 50 anos, um acordo entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita fez com que o país do Golfo firmasse todos os seus contratos de venda de petróleo em dólares. Agora, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman desfez esse pacto, possibilitando à Arábia Saudita negociar na moeda que bem entender, deixando o mundo mais próximo da desdolarização.
Os anos de reinado dos petrodólares estão chegando ao fim. Criado por economistas, o termo designa o grande volume de dólares estadunidenses obtidos pelas nações produtoras de petróleo a partir de suas vendas, especialmente às nações ocidentais, que se tornavam cada vez mais dependentes das exportações dos países árabes.
Na época, no entanto, quase ninguém sabia que essa adoção do dólar não se deu de forma 100% natural, mas sim a partir de um acordo político entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, firmado em 9 de junho de 1974, como resposta à Crise do Petróleo de 1973.
Deflagrada em resposta à guerra árabe-israelense de 1973 — também conhecida como quarta guerra árabe-israelense ou, ainda, Guerra do Yom Kippur (em hebraico, dia do perdão) —, a primeira crise do petróleo foi um embargo realizado pelos países árabes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) aos Estados ocidentais apoiadores de Israel, como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Japão.
Nesse período, o fornecimento mundial foi reduzido e os preços do barril subiram 17%. Essa crise “assolou a economia mundial”, afirma à Sputnik Brasil Luis Augusto Medeiros Rutledge, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na área de petróleo e gás e analista de geopolítica do Centro de Estudos das Relações Internacionais (Ceres).
“Aquele momento foi importante ao apresentar ao mundo o petróleo sendo usado como arma política e o mundo acompanhando os árabes agindo pela primeira vez em conjunto.”
A crise foi ainda mais agravada pelo recente fim do padrão-ouro do dólar norte-americano, estabelecido nos Acordos de Bretton Woods. Abolido em 1971, esse padrão dava um “grau de estabilidade muito grande” à economia mundial, diz à reportagem o economista Pedro Faria.
No modelo que vigorava até então, todas as moedas do mundo possuíam suas cotações em dólar, enquanto a moeda norte-americana possuía um lastro no ouro depositado nos cofres do Fort Knox. Isso, em tese, manteria um controle da quantidade de dólares em circulação na economia mundial.
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Mas os Estados Unidos se aproveitavam desse “privilégio” de controlar a cada vez mais demandada moeda global, e as instituições multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), para sistematicamente entrar em posições deficitárias. “E isso gerou uma queda na confiança de que cada dólar estava lastreado em uma quantidade de ouro definida por padrão.”
O fim do padrão-ouro foi a “expressão institucional” de um fenômeno que já estava ocorrendo, o aumento da mobilidade de capitais, afirmou Faria.
“Os capitais especulativos vão passar a ter muito mais mobilidade, e isso aos poucos vai se conformar em uma nova forma de imposição da hegemonia americana […]. Agora ela vai se dar por meio dos efeitos de uma fuga de capital ou de movimentações dos fluxos de dívida.”
O que foi o acordo de 1974?
Segundo Rutledge, a movimentação de fluxos da dívida é, de fato, um dos principais termos acordados entre os norte-americanos e os sauditas em 1974.
Para tentar impedir outra crise como a de 1973, no ano seguinte, os Estados Unidos e a Arábia Saudita firmaram um acordo de Cooperação Econômica no qual a Arábia Saudita investiria “suas receitas excedentes de petróleo em títulos do Tesouro dos EUA” e, em troca, receberia proteção militar e apoio econômico dos Estados Unidos.
“Além disso, o acordo do petrodólar estipulava que a Arábia Saudita se comprometeria a vender seu petróleo exclusivamente em dólares americanos.”
Isso ajudou a fixar o dólar estadunidense como “moeda dominante no comércio global de petróleo”, fazendo dos negócios globais de petróleo uma espécie de lastro para o dólar após seu “desengajamento do ouro”. “A crescente demanda global por dólares para comprar petróleo ajudou a manter a força da moeda americana”, observa Rutledge.
O acordo foi mantido em segredo até 2016, quando documentos obtidos pela Bloomberg, a partir do Freedom Information Act, demonstraram essa cooperação formal. Por não ter vindo a público, muitos detalhes são conhecidos por membros inteirados da indústria.
É o fim dos petrodólares?
Embora tenha sido útil aos países no passado, hoje o acordo é “algo totalmente sem sentido”, declara Rutledge. A Arábia Saudita se tornou um país poderoso e um ator regional de peso no Oriente Médio, enquanto os Estados Unidos fizeram o movimento oposto.
Não só a relevância geopolítica dos Estados Unidos contrai cada vez mais frente à ascensão de países do Sul Global, o país norte-americano tampouco é um grande comprador de petróleo dos sauditas.
Em vez disso, detalha Rutledge, os sauditas são hoje o segundo maior fornecedor de petróleo para a China, ficando atrás apenas da Rússia.
“Ou seja, a Arábia Saudita é um importante fornecedor de petróleo para um país rival dos Estados Unidos.”
Tudo isso ilustra o que Pedro Faria descreve como “o deslocamento do centro gravitacional da economia global”. “Cada vez mais os países têm como principal parceiro comercial a China e outros países da região.”
Segundo o economista, na medida em que a China se torna esse grande parceiro comercial dos países, pode-se “eliminar a necessidade de usar uma terceira moeda, mas tem que ter toda uma infraestrutura”.
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Nesse sentido, destaca Faria, é preciso ter não só um sistema de pagamentos internacionais, como o russo Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras e o Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços chinês, mas também um equilíbrio em usar determinada moeda para importação e estabelecimento de contratos de seguro, por exemplo.
“O que os Estados Unidos fazem e estão cada vez mais perdendo o poder de fazer é a coordenação por meio de força geopolítica e militar, diplomática e militar, de manter todo esse sistema alinhado no uso do dólar.”
Paralelamente a isso, o BRICS vem realizando esforços para a criação dessas novas infraestruturas baseadas em moedas locais. O grupo, destaca Rutledge, nunca deixou secreto seu interesse de “negociar petróleo e outras commodities em moedas diferentes do dólar”.
“É claro que, ao pertencer ao BRICS, a Arábia Saudita move suas peças geopolíticas com mais segurança. Afinal, ao seu lado estão China e Rússia.”
Outro fator que tem contribuído para a desdolarização é a reação agressiva que os EUA têm adotado com países que ameaçam abandonar o seu domínio monetário, como as sanções econômicas contra governos, indivíduos e pessoas.
Sendo assim, a Casa de Saud apresenta coerência e visão geoestratégica ao não renovar seu acordo com os Estados Unidos, podendo estabelecer contratos na moeda que bem desejar, como o yuan, o rublo, o real, o euro e a lira.
Para Rutledge, estamos na esteira de uma mudança nos contratos de petróleo. “A era do preço do petróleo em yuan está se aproximando”, afirmou o especialista. “E começará com a aceitação da Arábia Saudita de vender seu petróleo em yuan.”
“A China está fazendo tudo o que está ao seu alcance para internacionalizar o yuan, já que o volume de seu comércio mundial excede o volume de comércio dos EUA.”
O pesquisador ressalta que hoje o volume comercial de petróleo nas bolsas globais são avaliados em US$ 1,72 trilhão (R$ 9,32 trilhões), e o mundo consome mais de 100 milhões de barris por dia.
Ou seja, se os “petrodólares” perderem seu lugar como moeda-padrão nos contratos de petróleo, a moeda norte-americana verá sua demanda e seu valor caírem. “Isso é uma séria ameaça ao poder financeiro dos bancos americanos.”
Fonte: Site Sputnik / Foto: Saudi Press Agency