Análise: Brasil deve decidir que Forças Armadas quer antes de pensar em reformar ‘aposentadoria’

Encarada na mídia como um dos maiores drenos de recursos do governo, o regime especial de “aposentadoria” dos militares é tema de revisão no governo federal. Para analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, o problema orçamentário da Forças Armadas tem origens diferentes do que as debatidas na grande mídia.
Um novo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que o gasto com militares da reserva aumentou 84,6% nos últimos dez anos, de R$ 31,85 bilhões em 2014 para R$ 58,8 bilhões em 2023, aumentando o déficit orçamentário causado pelo pessoal inativo.
Um trabalhador do setor privado, assegurado pelo INSS, gera ao governo um déficit per capita de R$ 9,42 mil, criado pela diferença de quanto é arrecadado por impostos em sua folha de pagamento e quanto é pago aos atuais aposentados e pensionistas. Já um servidor público federal, que conta com seu próprio sistema, apresenta um déficit de R$ 68,79 mil por cada assegurado.
Em comparação, os militares da reserva causam um rombo de R$ 158,8 mil por pessoa na reserva. Cerca de 16 vezes mais que um aposentado pelo INSS.
Por conta dessa enorme diferença, o Sistema de Proteção dos Militares das Forças Armadas (SPMFA) entrou na mira de ministros que buscam um melhor ajuste das contas públicas, como a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Instituído em 1980, durante a Ditadura Militar, “a ideia era ‘recompensar’ os militares por todo empenho em defesa da Pátria e em decorrência da falta de benefícios na remuneração enquanto estão na ativa”, afirma Nayhara A. Cardoso Queiroz, head de Direito Tributário na RGL Advogados, em entrevista à Sputnik Brasil.
Esse regime, por sua vez, foi revisto em 2019, quando a contribuição da folha de pagamento aumentou de 7,5% para 10,5% e aumentou o tempo mínimo de serviço para que o militar possa entrar na inatividade de 30 para 35 anos.
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Militares não se aposentam

Hoje um membro das Forças Armadas quando entra na reserva tem direito a receber seu último salário de forma integral, chegando a R$ 37 mil para o último escalão, enquanto um civil é limitado ao teto previdenciário de R$ 7.786,02.
Os reservistas podem receber ainda uma ajuda de custo equivalente a 8 salários, com um máximo de R$ 300 mil para generais, almirantes e tenente-brigadeiros, além de poderem deixar pensão para cônjuges e filhos, até que cumpram um máximo de 24 anos.
Como explica Queiroz, os militares não estão vinculados aos tradicionais regimes de previdência social dos trabalhados privados e públicos. Pelo contrário, o SPMFA é regido diretamente pelo Ministério da Defesa através de seus respectivos comandos.
“Esses órgãos são responsáveis por administrar as pensões e aposentadorias dos militares, diferente do regime geral da Previdência Social, que é administrado pelo INSS”, afirma.
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Pedro Amorim de Souza, advogado e coordenador da área consultiva do Martins Cardozo Advogados Associados, explicita ainda que segundo a Lei 6.880, o Estatuto dos Militares, a remuneração dos militares fica a cargo do Tesouro Nacional.
“Então, para você ver que, na verdade, as coisas são bem diferentes mesmo, a ponto de não vir nem do mesmo lugar”, frisa ele também em declarações à reportagem.
Esses fatos dão gás à argumentação da pasta de Defesa, de que o SPMFA não se trata de uma aposentadoria, uma vez que os militares da reserva podem ser convocados de volta para a ativa em caso de conflito, além de também contribuírem com uma parcela desses pagamentos para o próprio SPMFA.
José Múcio Monteiro, ministro da pasta, argumenta também que o regime distinto visa corrigir desvantagens econômicas da categoria, como não ter recolhimento de FGTS e não receberem adicionais noturno, de periculosidade, hora extra e outros; e sociais, como a impossibilidade de se candidatar a cargo eleitoral sem ir para a reserva.
Dessa forma, a falta desses direitos geraria uma economia de R$ 30 bilhões nas despesas com pessoal, o que de certa forma compensaria o valor gasto com os militares na reserva.
Segundo Souza, essa matemática é extremamente complexa de se afirmar, uma vez que seria preciso analisar precisamente diferentes situações variáveis, como “quantos oficiais fazem hora extra ou quantos oficiais estão disponíveis durante o domingo”.
“Mas é preciso colocar em perspectiva que a diferença é uma diferença superlativa.”
“Mesmo que haja uma diferença entre civis e militares, em termos previdenciários, essa diferença seria justificável até algum ponto”, diz Souza, “mas, provavelmente, não a esse ponto de ser 15 vezes maior uma em relação à outra”.

Problema ‘é a própria estrutura de Defesa do país’

Para Vagner Camilo Alves, professor do Instituto de Estudos Estratégicos (Inest) da Universidade Federal Fluminense (UFF), a argumentação dos militares é “em linhas gerais, correta”.
Segundo o analista, os membros das forças não recebem grandes salários quando comparados a outras funções federais, como é o caso dos membros da casta jurídica brasileira, “mas mais do que os professores universitários, certamente”, brinca.
De fato, diz Alves à Sputnik Brasil, as funções da vida militar são muito específicas, fazendo com que seja necessário um sistema diferente de “aposentadoria”.

“As pessoas que se dedicam a isso têm uma vida muito diferente da minha e da sua, mudam de lugar o tempo todo e essa questão da hierarquia e disciplina é uma profissão que sai com ele.”

Ainda assim, essas questões orçamentárias precisam ser revistas, declara o especialista. Atualmente o gasto com pessoal, seja da ativa, da reserva ou pensionistas, engole 78% do orçamento de Defesa brasileiro.
“Essa questão se insere numa outra muito maior, né? Eu diria que é que tipo de Forças Armadas nós queremos, que nós precisamos.”
Na sua opinião, o contingente militar brasileiro é muito grande e, em sua maioria, “com um valor militar baixíssimo”. “O tamanho das forças e essa disparidade brasileira da Marinha e da Força Aérea em relação ao Exército é histórico e até compreensível, mas não mais.”

“Porque para a estatura que o Brasil busca no sistema internacional, ele precisa de forças mais tecnológicas.”

De acordo com Alves, a diminuição do número de pessoal abriria recursos para mais investimentos, inclusive em projetos de longo prazo “que o Brasil precisa mais”, como é o caso do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub) da Marinha e do Programa Espacial Brasileiro, da FAB.
Até porque, crava Alves, “esse tipo de tecnologia não será fornecida ao país” por outra potência.
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Segundo o professor da UFF, esse é um problema “da própria estrutura de Defesa do país”, sendo necessária “uma discussão de que Forças Armadas queremos, porque dá para diminuir a quantidade de militares”.
Por motivos de inércia histórica e burocrática, aponta o analista, o eixo Sul-Sudeste possui uma “quantidade excessiva de quartéis” que hoje não fazem mais sentido. Alguns, lembra Alves, com razão foram transferidos para a região amazônica. “Que de fato é uma região onde a presença é importante.”

“A estrutura de Defesa brasileira deveria sofrer uma alteração direcionada a uma força armada mais vinculada ao desenvolvimento tecnológico. Isso demandaria uma discussão nacional no Congresso, que eu acho que é o foro adequado, com a participação dos militares.”

Nesse sentido, afirma Alves, uma reforma no SPMFA deve ser feita com essas questões em mente, de abrir mais espaço para investimentos em tecnologia nas Forças Armadas, e não somente para cortar gastos para o governo “pagar juros”.
“Cortar por cortar, aí prefiro deixar como está”, sintetiza.
Fonte: Site Sputnik / Foto: Exercito Brasileiro